Eu já fui assim Tão focado em mim
Sem querer conselhos de ninguém (…)
Fiz bandeira de um velho ditado
Melhor só que mal acompanhado
Nem pensava em apoiar os pés no chão
A solidão ganhou até letra de música de uma banda de sucesso portuguesa, a Quatro e Meia, que fala de uma das realidades mais sensíveis da sociedade moderna. É bom que alguém fale do tema de um jeito que chegue às massas, porque apesar de todos já termos nos sentido sozinhos, há sempre pudor, vergonha ou dificuldade de o admitir.
Existe um estigma de fraqueza de quem se sente só. O paradoxo é que hoje há muitas maneiras de encurtar distâncias e conviver com familiares e amigos —meios de transportes acessíveis, estradas boas, viagens low cost, telefo nes, internet. E, apesar disso —e talvez um pouco por isso— cada um vive na sua bolha.
Falta de tempo, excesso de trabalho, obrigações, cansaço. Há muitas razões, algumas até inexistentes antes da era das redes sociais. Eu me lembro de estar numa sexta à noite sozinha em casa e ligar para uma amiga. “Vamos comer alguma coisa ou tomar um café?”, eu disse.
Em menos de trinta minutos estávamos sentadas em volta de uma mesa rindo ou chorando e falando da vida.
Só que momentos desses são cada vez mais raros, ora porque não marcamos restaurante, ou porque não estamos suficientemente arrumados para sair, ou porque —e principalmente porque— temos muita dificuldade de ser espontâneos. Manter laços atualmente é o resultado de planejamento.
Sair implica ser visto e postar nas redes sociais e, para isso, é necessário se apresentar irrepreensível. Aí, quando as pessoas não se sentem na melhor versão, preferem não ir, porque há que cultivar a ideia de perfeição. Só que essas mesmas pessoas sabem que não são perfeitas, e, nessa con tradição de aparência versus realidade, se desenvolve a Síndrome do Impostor.
Queremos parecer e não ser o que somos. Cansados dessa escravidão da imagem, da moda, do culto ao corpo, há quem prefira se isolar, especialmente os mais tímidos, introvertidos, com dificuldades de relacionamento ou baixa autoestima. Como vão se encaixar e ser aceitas estas pessoas num mundo perfeito?
O mal-estar se acentua porque o isolamento pode causar dor emocional. A pessoa se sente rejeitada pelos outros e se isola mais, num círculo vicioso. Quantos clientes atendo em consultório e percebo que a sua patologia é a solidão? Há queixas de dores, problemas no traba lho, tristeza.
São sintomas que esquecem assim que recebem um convite para um evento de que gostam, com pessoas com quem se sentem seguros e felizes. E, quando não, pagam para ir ao consultório apenas para ser ouvidos e transformam a consulta numa reunião ou conversa que não têm oportunidade de conseguir de outro jeito.
Solidão é sobretudo não ter com quem se desenvolver intimidade emocional. O maior enigma desse sentimento é que é possível estar sozinho sem sentir solidão. Há pessoas que gostam de sossego, de tempo para si. É o momento em que tiram para pôr em prática seus projetos ou objetivos de vida.
Na maior parte do tempo, não sen tem solidão. Então, partindo dessa ideia podemos afirmar que apenas as pessoas que experienciam dor psicológica quando estão sozinhas sofrem de solidão. Ainda no século passado, Melanie Klein foi pioneira na investigação sobre o tema e considerou que a solidão tinha origens na infância.
Para a psicanalista, os solitários sofriam de uma perda irreparável primordial da qual nunca conseguiram se recuperar.
No podcast Que Voz É Esta, sobre a depressão em bebês, o pedopsiquiatra Pedro Caldeira da Silva, do hospital pediátrico Dona Estefânia, em Lisboa, relata que o bebê mais novo que atendeu com depressão tinha quatro meses.
“Foi um caso de entrega da criança no hospital, a mãe o deixou lá porque não tinha condições para tomar conta dele”, afirmou. A depressão deste bebê ocorreu, segundo análise de Melanie Klein, por solidão.
Ela afeta a todos, em qualquer idade, e pode se revelar de diferentes formas. Foi o que observou o psiquiatra João Carlos Melo, que publicou o livro “Uma Luz na Noite Escura”, de 2022, resultado de sua observação a pacientes. Uma delas é a dificuldade ou a incapacidade de transmitir aos outros o que está sentindo.
O autor diz que “a solidão, ainda que seja inerente à condição humana, parece estar em crescimento e se tornando um enorme problema”. A solidão tem impacto na saúde física, nomeadamente na hipertensão e em problemas cardiovasculares, além das demais psicopatologias, como ansiedade, estresse e depressão.
Em 2021, a Organização Mundial de Saúde reconhecia a depressão como a principal causa de incapacidade no mundo. O escritor americano Andrew Solomon também fez a descida ao inferno da doença e sua experiência se transformou no livro “O Demônio da Depressão”, no qual relata em primeira pessoa o que é lutar contra a depressão crônica.
Em oposição à felicidade, que o autor acredita ser fugaz, a depressão é um estado que não passa nunca. Ele indica a dica da famosa escritora do século 20, Virginia Woolf: “Faça anotações e a dor passa!”. E conclui que a depressão é a doença da solidão.
Mesmo sabendo que o autocuidado deve ser sempre o ponto de partida —hábitos saudáveis, praticar atividade física, dormir bem e ter uma alimentação saudável—, retribuir o amor e fazer algo pelos outros me lhora a saúde mental.
Segundo João Carlos Melo, “enquanto houver alguém que pensa em nós, nunca estaremos sós”. Acrescento que, se olharmos cada um como um potencial amigo, se virmos a humanidade como um todo, a dor da solidão passa a não ter espaço para existir. Vamos conviver, vamos nos cuidar!